domingo, 20 de março de 2011

Cozinhando pinturas

De tão cheios estavam os seus braços, tão cheios de coisas necessárias, que se viu na contingência de empurrar com o pé a porta entreaberta que separava os dois mundos - o de onde vinha e aquele onde ia entrar, agora, o da sua casa. Tudo teria corrido normalmente, apesar de todo aquele carrego, não fosse o terem-se embrulhado nas suas pernas os latidos e excitações que, em jeito de calorosa recepção, lhe deu o minúsculo animal de estimação. Sem amparo algum, foi-se-lhe o tal carrego, foi-se-lhe tudo, pois escaparam-se-lhe dos braços, os pincéis, os mexilhões, as bisnagas de tinta, as  massas e os berbigões. Estupor do cão... pensou, que tamanha confusão semeou!
Lá se recompôs e se baixou, empurrando com uma mão o bicho e apanhando com a outra os espalhados ingredientes com os quais pretendia confeccionar o seu menu do dia - uma pintura e um cozinhado ou, talvez, um cozinhado e uma pintura.

O tempo é inimigo do pintor e do cozinheiro, pois a arte não se faz pensando em horas e muito menos em minutos. A criatividade é coisa que requer impulso em liberdade, um deixar fluir sem relógios e nevoeiros de exigências. Por isso, depois daquele carrego de braços, da porta entreaberta que teve de empurrar com o pé e do histerismo afectuoso do animal ladrador, o pintor-cozinheiro correu para o fogão onde a fome dos filhos gritava e exigia, não a pintura, mas o cozinhado. Pegou, então, na panela e meio atordoado com aquela urgência, misturou as tintas com a massa e remexeu a panela com pincéis, sem mesmo se dar conta que na tela pespegava mexilhões com colheres de pau e nela largava golpes de faca.
Pintou, assim, na panela e cozinhou na tela. O resultado foi espantoso e por todos elogiado. A tinta azul, com pequenos laivos de amarelo, deu um sabor inusitado ao cozinhado, pois tinha sonhos misturados com aqueles traços apressados de vida indecisa. Os mexilhões deram à tela a cor de rocha batida pelas vagas do oceano e um cheiro a maresia de noites de Verão. Confuso, ficou o cão, que não sabia bem se pedinchar da tela ou da panela.

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