quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Espero

Sobre a serra uma manta de nuvens cinzentas.
Pingos grossos de chuva teimosa batem contra os vidros da janela do meu quarto.
Deixo-me estar, assim, encostada a eles, aos vidros, de olhos postos no nada.
No silêncio das primeiras hora do dia, já estou cansada.

Espero.

Queria ser a gota de água que escorre e se evapora.
Queria não ter razão de ser e ser apenas, como aquelas nuvens.
Mas não consigo chorar como elas.
Nem tão pouco ignorar...ir-me embora.

Espero.


segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Perdida

Era uma vez uma menina muito velha que tudo julgava saber das coisas humanas. Na sua casa, feita de paredes de vidro, existiam estantes enormes replectas de livros e todos ela tinha lido, menos um - o mais importante de todos...aquele que ensinava que é impossível saber tudo sobre as coisas humanas, inclusivamente que ela própria era uma delas. Não viu aquele precioso livro porque era distraída e a distracção é outra coisa humana que pode dar muitos dissabores, só que a menina muito velha não levava muito a sério as distracções.
Num dia qualquer, sem hora precisa, resolveu dar um passeio pelo mesmo caminho de sempre. Um caminho seguro, sem ervas daninhas, nem plantas espinhosas. Ao fundo viu o começo de uma floresta que nunca ali tinha estado. Curiosa como era (devia ter lido o tal livro esquecido que também ensinava que a curiosidade podia trazer o inesperado), resolveu ir espreitá-la, meter-se nela. Vista de fora, a floresta parecia tão bela, calma e acolhedora! Entrou. Árvores, flores, arbustos, chilrear de aves descontraídas. Foi andando, andado, cada vez mais fascinada com uma natureza tão exuberante.
Não sabe, a tal menina muito velha, quanto tempo andou por lá. Perdeu a noção do dia e da noite. Quando se deu conta, achou que era altura de voltar, de regressar ao seu caminho, aquele que a levava à sua casa com paredes de vidro. Mas, como que por magia, um nevoeiro denso envolveu a floresta e por mais que tentasse não encontrava de maneira nenhuma o caminho de volta. Caminhou, então, horas e horas, dias, meses, ao acaso em busca de uma saída. Tinha de a encontrar custasse o que custasse. Para que lado ficava o Norte? Onde estava o Sol ou a Lua para a orientar? Nada...só nevoeiro cada vez mais denso, pesado.
Foi então que se abeirou, sem saber muito bem como, de um precipício. Lá bem no fundo o mar calmo, no seu vai e vem constante, espalhava espuma nas rochas. "Vem ter comigo, menina muito velha que tudo julgavas saber. Salta e funde-te comigo. Para trás só tens nevoeiro e as paredes de vidro da tua casa estilhaçaram-se. Vem e esquece."
À beirinha do precipício, houve um derradeiro momento em que a menina muito velha lamentou ter-se esquecido daquele livro que por distracção não lera, de ter entrado na floresta desconhecida por curiosidade. Mas sentia-se tão cansada, tão cansada de tantas horas perdidas, de tanto caminhar sem rumo certo, que se deixou cair e fundiu-se com o mar.


Probabilidades

Quantas probabilidades existem de sairmos à rua e sermos atropelados por um camião? Depende. Se caminharmos pelo meio da estrada essa probabilidade aumenta; se por um acaso até formos pelo passeio, há ainda a infima probabilidade, o acaso, de surgir um condutor bêbado que o suba e nos mate. Mas podemos minimizar os riscos de que essa probabilidade ocorra ou mesmo até evitá-la, não saindo à rua por exemplo.
Por outras palavras, se queremos realmente reduzir a probabilidade de que algo aconteça na nossa vida, algo que não queremos, temos mesmo de evitar "andar pelo meio da estrada" ou simplesmente "não sair de casa".
Quantas probabilidades há de nos apaixonarmos por alguém? Algumas, dado que vivemos em sociedade e esta é composta por milhões de pessoas, mas muito poucas probabilidades se não quisermos de todo que isso aconteça. Basta fecharmo-nos, evitar um olhar, uma conversa...virar as costas. O que fazer então quando, certos e seguros de que o tal acaso não nos vai bater à porta, este acontece e da última maneira que julgávamos possível?! O que fazer se apesar de todos os cálculos, avaliações de risco, abrimos a porta e o camião entrou pela nossa casa dentro. Foi-se a mobília, foram-se as certezas e as seguranças cuidadosamente construídas. O que fica? O que se faz?

sábado, 25 de dezembro de 2010

Um Sábado como outro qualquer

Hoje é dia de Natal, excepto para hindus, budistas, xintoístas...e para mim. Hoje é um Sábado como outro qualquer.

Como qualquer outra pessoa, nada e criada em país de tradição cristã-católica, fui habituada a vivenciar intensamente certas festividades tradicionais. Cresci num bairro popular da velha Lisboa "de outras eras", onde até mesmo os pobres tinham uma mesa composta na quadra natalícia. As prendas vinham só nessa altura e nós, as crianças, esperávamos um ano inteiro pela manhã mágica de 25 de Dezembro para vermos o que o Menino Jesus nos tinha deixado no sapatinho. Na véspera comia-se bacalhau cozido com couves, ia-se à Missa do Galo e depois, só depois, se atacavam as fatias douradas, as filhozes e a aletria. No dia seguinte era o peru, imenso, recheado e uma tarde em pijama, junto à árvore cheia de luzes, a ver o filme "Música no Coração".
Mas o tempo passa e as sociedades estão sempre em mudança...nós mudamos. Manter tradições que tendem a se perder num oceano de individualismo e consumismo, não é fácil. Pior ainda quando, em determinadas alturas da nossa vida fizemos escolhas e todas as escolhas, certas ou erradas, têm consequências.
Hoje não é Natal...é um Sábado como outro qualquer.
No espaço de menos de um ano vivi o improvável e revendo, agora, momentos passados, dou-me conta de que as minhas escolhas me conduziram ao fim de uma história de vida sem retorno possível.
Hoje, um Sábado como outro qualquer, sem verdadeiramente o ser, dou-me conta que o possível reside apenas em mim, porque os outros estão de passagem e nada é eterno.
Não vale a pena apegarmo-nos a tradições, coisas, pessoas...Este é um Sábado como outro qualquer.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Direitos Humanos

Estamos acomodados ao nosso "pequeno mundo"...confortáveis. As nossas preocupações nada são quando, em terras tão distantes, os direitos humanos são sistematicamente violados, seja por força da fome, da falta de cuidados de saúde, da tortura. Como podemos ficar indiferentes?!



Nota: a mutilação genital feminina é praticada aqui em Portugal e mantida em segredo. Ao Hospital Amadora-Sintra chegam jovens guineenses muçulmanas com hemorragias dela resultantes.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

In extremis

Querer viver intensamente é pecado,
meio caminho andado
para a desilusão.
Acabamos sempre sozinhos,
insatisfeitos,
no meio da multidão.

Onde estás, coragem?
Porque me deixo levar assim?
Quando aquilo que quero para mim,´
está mais longe e mais alto?!
Porque não me atrevo a dar o salto
para a outra margem?!

Que absurdo é viver
com regras e imposições.
Que absurdo é fazer, porque tem de ser,
por medo de retaliações.

Ponho a máscara da normalidade
consentida.
Controlo esta ansiedade,
descabida.

Eu quero, eu preciso do in extremis.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Paulo

Tem 15 anos, ele. O que se sabe da vida? Um quase nada. Mas, nesse quase nada adivinho já muitas desilusões e desatinos. As suas mãos são feitas de dedos nervosos e o olhar é ansioso. A roupa que cobre o seu corpo magro está mal cuidada. Tudo nele é um desalinho.

A folha que lhe dei está em branco. Separou a carteira dele de todas as outras e eu deixei. Ficou assim, tolo, no meio da sala, afastado de tudo e de todos. Entre nós um corredor de pequenas cabeças debruçadas sobre o trabalho. Silêncio. Não uma provocação, mas um pedido mudo de ajuda...eu sei...adivinho-o.

Vou até é ele e peço-lhe, baixinho, que se levante e venha comigo até às largas janelas da sala. "Para quê?" pergunta-me, confuso. Insisto.

Olhamos os dois lá para fora. "Repara, Paulo, como é bonito o Outono." Ele ri-se e em jeito de desafio diz-me que só vê mato, lixo. "Estás enganado. Olha lá com atenção. Não vês as cores das folhas das árvores...os castanhos, os amarelos...e a chuva a bater nelas? Vão acabar por cair todas."

Novo silêncio. O Paulo quer desviar os olhos das árvores que lhe mostro. Poiso a minha mão no seu braço e digo: "Olha, as coisas são mesmo assim. Daqui a uns meses volta o verde e vai ficar tudo bem. Gostaria muito que ainda cá estivesses para vermos isso. Agora volta para o teu lugar." Obedece. Deita a cabeça, sobre os braços, na carteira. "Vai passar, Paulo, acredita."

Nota: o Paulo é um jovem em risco de abandono escolar.