quinta-feira, 31 de março de 2011

Andorinhas

Saltitando de telha em telha, de fio em fio, os pardais desfazem-se em piados alegres sob a tarde amena. São a Corte que espera a chegada das rainhas da Primavera, que hão de voar soberanas e encher os beirais dos telhados com os seus ninhos de palha e lama. Vêm de tão longe essas rainhas estivais, as andorinhas!

Há muitos, muitos anos, uma certa andorinha acabada de chegar, poisou numa árvore e pôs-se a pensar naquele que seria o melhor lugar para o seu ninho. Viu uma janela aberta e resolveu espreitar. Deu conta de que era uma sala de gente pacata e calma, abrigada de frios possíveis e barulhos incómodos. A andorinha tomou uma decisão - fez ali, dentro daquela sala, numa parede próxima da janela, o seu ninho. E por ali ficou e criou os seus filhos.

Isto pode parecer incrível mas aconteceu mesmo. Os meus tios viveram alguns meses com um ninho de andorinha dentro da sala e nunca fecharam a janela para não impedir que a Natureza entrasse por ela.



1434 - Bojador

Determinados, os homens avançam para a barca que os há de levar para além do mar conhecido. Aventureiros, curiosos e destemidos, sabem bem que podem falhar no seu propósito de passar para além do Bojador e que, por teimosia daquele Infante, poderão nunca regressar. Dormirão ao relento, sob a chuva e o vento, batidos pelas ondas da incerteza e, talvez, por essa sede e fome próprias dos marinheiros de outros tempos. No cais, despedem-se de mulheres chorosas que veêm assim partir o garante do seu sustento, com promessas de abundância, caso tão arrojado empreendimento traga o esperado resultado. Doze anos de tentativas goradas de passar aquele Cabo, deixam-nas a elas, às mulheres chorosas, descrentes, duvidosas.
Içam-se as velas.
Já se fizeram ao mar, mas não muito longe da costa.
A barca baila sob a ondulação azul, cristalina, com cheiro a sal e a esperança.
Gil Eanes reza. Gil Eanes reza e faz cálculos e mais cálculos, medindo distâncias e até a sua própria vontade de agradar àquele teimoso Infante, seu senhor, pois o Bojador já se adivinha no horizonte.
Está tomada a decisão! O capitão-escudeiro grita: "Vamo-nos afastar cinquenta léguas do maldito cabo...é a única forma de o passar!"
 Batem, acelerados, os corações dos navegantes. "Será desta? Será desta?" gritam vozes caladas dentro dos peitos "Que mar de fogo nos espera se conseguirmos passar este Bojador?!"

1434, Gil Eanes e os seus marinheiros passam o Cabo Bojador, limite sul dos conhecimentos europeus, demonstrando que era possível continuar a navegar ao longo da costa africana.



terça-feira, 22 de março de 2011

Janela

Da minha janela veêm-se outras janelas. Através dela, da minha janela, a cidade quase adormecida, mas ainda viva sob o anoitecer de um sol que já se pôs, revela-me outras vidas que adivinho ou simplesmente imagino. Rotinas, solidões, gritos e discussões, alegrias esparças de quem se contenta em viver nesses ninhos de pedra que são, as suas casas. Ilusões, cansaços, cozinhas que se animam com refogados apressados, salas com televisores ligados para ajudar a evadir uma mente que se quer vazia de um dia tão aborrecido e igual a tantos outros. Há crianças que choram, que reclamam atenção. Há esposas que remoiem desfeitas antigas e homens que de tão calados e cansados, já nem sabem em que língua falar. Amores, ódios, rancores, pequenas alegrias e dores saiem, de todas aquelas janelas que da minha janela vejo, como vento de humanidade submetida.





domingo, 20 de março de 2011

Cozinhando pinturas

De tão cheios estavam os seus braços, tão cheios de coisas necessárias, que se viu na contingência de empurrar com o pé a porta entreaberta que separava os dois mundos - o de onde vinha e aquele onde ia entrar, agora, o da sua casa. Tudo teria corrido normalmente, apesar de todo aquele carrego, não fosse o terem-se embrulhado nas suas pernas os latidos e excitações que, em jeito de calorosa recepção, lhe deu o minúsculo animal de estimação. Sem amparo algum, foi-se-lhe o tal carrego, foi-se-lhe tudo, pois escaparam-se-lhe dos braços, os pincéis, os mexilhões, as bisnagas de tinta, as  massas e os berbigões. Estupor do cão... pensou, que tamanha confusão semeou!
Lá se recompôs e se baixou, empurrando com uma mão o bicho e apanhando com a outra os espalhados ingredientes com os quais pretendia confeccionar o seu menu do dia - uma pintura e um cozinhado ou, talvez, um cozinhado e uma pintura.

O tempo é inimigo do pintor e do cozinheiro, pois a arte não se faz pensando em horas e muito menos em minutos. A criatividade é coisa que requer impulso em liberdade, um deixar fluir sem relógios e nevoeiros de exigências. Por isso, depois daquele carrego de braços, da porta entreaberta que teve de empurrar com o pé e do histerismo afectuoso do animal ladrador, o pintor-cozinheiro correu para o fogão onde a fome dos filhos gritava e exigia, não a pintura, mas o cozinhado. Pegou, então, na panela e meio atordoado com aquela urgência, misturou as tintas com a massa e remexeu a panela com pincéis, sem mesmo se dar conta que na tela pespegava mexilhões com colheres de pau e nela largava golpes de faca.
Pintou, assim, na panela e cozinhou na tela. O resultado foi espantoso e por todos elogiado. A tinta azul, com pequenos laivos de amarelo, deu um sabor inusitado ao cozinhado, pois tinha sonhos misturados com aqueles traços apressados de vida indecisa. Os mexilhões deram à tela a cor de rocha batida pelas vagas do oceano e um cheiro a maresia de noites de Verão. Confuso, ficou o cão, que não sabia bem se pedinchar da tela ou da panela.

sábado, 19 de março de 2011

Bushido

O que resta do Japão de outras eras? Talvez subsistam ainda, longe das grandes metrópoles, no mundo rural, fragmentos daquela alma japonesa tão admirada por Venceslau de Morais . Após Hiroshima e Nagazaki, o Império do Sol Nascente teve de adaptar-se ao Ocidente, sob a égide do gigante capitalista, num mundo dividido em dois grandes blocos políticos, económicos e sociais. Soube fazê-lo, tornando-se ele próprio noutro gigante, fruto daquilo a que a História chama de "o milagre japonês". Acredito que, não haverá terramoto, nem tsunami que dobre essa alma japonesa e que nem mesmo a ameaça nuclear ponha fim a uma civilização, que é única e imparável.
Uma civilização que criou um código de conduta que se pauta por valores inquestionáveis de honra e fidelidade - o Bushido.

O Bushido, que significa "o caminho do guerreiro" era o código de conduta que devia ser observado pela classe guerreira (Samurais) no Japão feudal.  O conceito de honra é fundamental e extensível, não apenas ao samurai mas a todos, inclusivé às mulheres, sob pena de serem alvo de desprezo. Lealdade, etiqueta, educação, frugalidade e gratidão, deviam estar sempre presentes. A própria morte, dado que existia a crença numa vida para além dela, deveria ser honrosa e a única saída possível para uma falha imperdoável, insuportável para o próprio. Através do seppuku (suicídio ritual), o samurai podia recuperar a sua honra perdida:
"No mundo dos guerreiros, seppuku era um acto de bravura que era admirável em um samurai que sabia que foi derrotado, perdeu a honra, ou que foi mortalmente ferido. Isso significa que poderia terminar os seus dias com as suas transgressões apagadas e com a sua reputação não apenas intacta, mas na realidade reforçada. O corte do abdómen libertava o espírito do Samurai da forma mais dramática, mas era uma forma extremamente dolorosa e desagradável de morrer e por vezes o Samurai que realizava o acto pedia a um fiel companheiro que lhe corta-se a cabeça no momento da agonia."
The World of the Warrior (Stephen Turnbull)

O guerreiro é também aquele que procura o seu caminho, que tem um objectivo de acordo com ele e está consciente das suas qualidades e limitações, alcançando a sua meta através da vontade de vencer essas limitações. O seu caminho passa pela "pena e pela espada", pois não basta praticar a "arte da guerra", mas também a leitura e a escrita, buscar o conhecimento.

"Um samurai deve antes de tudo ter sempre em mente, dia e noite, desde a manhã de ano novo, quando pega os palitos para comer e tomar café, até a noite do último dia do ano, quando paga suas facturas, o facto de que um dia irá morrer. Essa é a sua principal tarefa." Daidoji Yuzan

Nota: este post nada mais é do que uma fraca tentativa de descrever algo que ultrapassa as palavras.

Filmes: Shogun; O Senhor da Guerra; The last Samurai.
Leituras: toda a obra de Venceslau de Morais; Yukio Mishima.

Arigato

Moscas

Com as patinhas levemente pendentes, voam em círculos as moscas, se é que se pode chamar àquilo de voar...Talvez, antes, planar, já que as asas, de tão transparentes e vibrantes, mal se notam.
Sempre naquele monótono movimento, como que sem objectivo algum, pairam assim por um momento, as moscas, para logo retomar a mesmo giro. Não me parece que conversem sobre as suas vidas de mosca e, às tantas, nem se dão conta umas das outras, excepto quando por uma fatalidade de rota mal calculada, se chocam e protestam, lutam por instantes, para  logo retomar, cada uma, o seu caminho.
Poisada numa maçaneta de porta, camuflada sobre o cobre envelhecido, uma outra mosca parece indiferente às voltas e reviravoltas das demais. Diriamos que estaria morta, não fosse um ligeiro menear de cabeça de tempos a tempos, em busca de um melhor ângulo para tudo ver ou simplesmente para nada, por nada, que vida de mosca não tem de ter razão de ser. Num outro canto, semi-oculta pelas folhas caídas de uma planta sedenta, uma outra da mesma espécie, empina-se e lança-se em voo picado para o centro do círculo de planadoras, despejando zunidos, ordens talvez, quem sabe, para as fazer mudar de sentido ou ganharem sentido. O certo é que, depois de uns quantos sobe e desce, umas quantas viradas agitadas, um asar mais incerto do que o costume, todas se juntaram em redor da nova mosca e depois de breve colóquio, pois assim pareceu, dirigiram-se decididas à outra, à que estava poisada na tal maçaneta de cobre envelhecido, e pararam no ar. Então, a mosca que viera da planta morta de sede, aproximou-se mais e perguntou-lhe porque razão não fazia como as demais e voava todo o dia, assim, naqueles círculos grupais. Acaso se julgaria superior às outras? A resposta não se fez esperar e a questionada, batendo asa, dispara janela fora e deixa-se ficar, a pairar sob o sol brilhante, expectante que as outras a sigam e larguem de uma vez por todas aquela monotonia de planar sem sentido, sempre em círculos que não levam a nada. Talvez as moscas pensem, embora digam que não os que julgam pensar. O que é certo é que, sem muito tempo perder, a que voou janela fora não esperou mais e fez-se aos ares dos começos de Primavera. Tola! Tola! zuniu a da planta semi-morta Vais ser comida pelos pássaros e esmagada por tempestades!
Será que as moscas riem? Não que se veja, mas por dentro talvez e aquela riu, certamente, ou nem por isso, quem sabe?!

Voam em círculos as moscas, horas a fio, porque nessa vida que é a delas o tempo não faz sentido, se é que alguma coisa faz sentido nas vidas de mosca. Pego num daqueles insecticídas que afirmam ecológicos e minutos depois acabaram-se os voos. Caídas no chão da minha cozinha, agonizantes, de patinhas para o ar, nenhuma escapou, nem mesmo a da planta sedenta, à qual agora dou água, lamentando o meu eterno descuido para com ela.

Agitata da due venti (Vivaldi)

Magnifica interpretação de Cecilia Bartoli.




Agitada, sim, e depois?
Ondas revoltas,
a bater nas rochas
e a espantar gaivotas.
Agitada até mais não.
Espuma no ar,
tempestade de paixão,
mar em revolução,
desconcerto
sem qualquer concerto.

Quero lá saber!









quarta-feira, 16 de março de 2011

Encostado ao balcão do café de bairro, o velho segura com mão trémula a chávena de café. Diz que está quente demais, a chávena, que lhe queima os dedos frios, mas que quer aquecimento de alma, mais fria ainda do que o corpo. Deixa-se estar assim, encostado, abandonado, de olhar vago em púpilas pálidas, com ares de quem perdeu a esperança na vida, porque a morte se aproxima, sente-o, vida que não foi podendo ser.
O Senhor Mário é assim, um homem de hábitos eternos por falha de opções. Todos os dias, cumprindo uma mesma rotina, lá vai até o café de bairro, porque não há muito mais o que fazer. Caminha pela rua, escassos metros, a passo lento e cansado, sem sobressaltos, pausando de quando em quando, para respirar e olhar o alto, numa ânsia de partir sabe-se lá para onde. No regresso trás o saco com duas carcaças e lamenta o preço das ditas, das coisas que estão tão caras e com a abnegação de um vencido da vida, a parca reforma que não lhe dá para nada.
Não tem sombra de gente, o Senhor Mário. A sua casa é feita de silêncios, memórias só dele e maços de tabaco vazios, largados ao acaso sobre móveis que ninguém limpa. Nela não há risos, nem ruídos de cozinha, nem cheiros de comida quente, nem o abraço de quem envelhece amando essa mesma velhice a dois. Os filhos foram-se há anos atrás, fazendo da vida que lhes foi dada uma outra, distante e sem tempo para o velho. A mulher perdeu-se algures num passado remoto, entre idas ao cabeleireiro e aborrecimentos vários, daqueles que matam o amor e a vida.
O Senhor Mário suspira, enquanto bebe o café, trémulo e cansado, encostado aquele balcão do café de bairro.
Hoje não é dia de cansaços, nem monotonias. Vou largar a papelada rabiscada num canto bem escondido e dar descanso a esta voz saturada de estórias da História, pedagogias e psicologias inventadas. Tão pouco irei ficar parada a olhar aquela mesma parede de sempre, com ideias de pincel e tinta, mas sem vontade de nada que não seja, isso mesmo, olhar. Afastarei, com persistência, a imperiosa necessidade de retirar aquela camada de pó que me pede pano, pois de preciosismos domésticos estou eu farta e não sou Marta, sou Maria. Maria por baptismo e por melâncolia de quem nasceu para a vida contemplativa.
Hoje não vou verter lágrimas, porque de tanto sal que já perdi, acabarei por me tornar ensonsa. Outras lágrimas, que não as minhas, chamam por mim e são tantas, mas tantas, tão choradas ao longo de séculos e séculos de ânsias e dores, que delas nasceram os oceanos. Pois é isso mesmo! Neste hoje saturado da saturação de quotidianos sempre iguais, como que feitos por medida, vou ver o mar, vou beber o seu azul profundo e deixar-me flutuar ao sabor das marés, como uma sereia esquecida à tona d'água. É tão fácil imaginar!
De olhos bem fechados e com as mãos sobre as orelhas, sem um mover de pernas, de nada, dou por mim, tão rápida como uma batida de coração, à beira dele, do tal mar salgado, agitado de emoções esquecidas e sempre alimentado por outras novas. Perder-me no seu silêncio é o que mais quero, transformando-me em algas, conchas, navio fantasma sem rumo, porque sem rumo estou e só conheço a incerteza dos dias vazios, sem passado, nem futuro.

sábado, 12 de março de 2011

Aqui estou, estando sem estar verdadeiramente, rodeada de um deserto de rostos sem expressão e vozes que incomódam, sujeita a um quotidiano que sendo o mesmo já não o é, nem nunca poderá ser.
Aqui estou, tristeza, feita de ausência e incerteza, de muros altos que não consigo transpôr. 
A esta saudade, nostalgia e solidão, procuro contrapôr, sem sucesso, uma fingida alegria e só no silêncio encontro a recordação que me anima e a confiança num novo dia.


A Vida é sofrimento.

"O mundo é o reino do sofrimento e a existência está impregnada de insatisfação e frustração que pode se manifestar na forma de sofrimentos físicos, mentais, causados pela natureza ou por outros seres vivos e a nobre verdade que conduz ao sofrimento é esta: a velhice é sofrimento, a doença é sofrimento, a morte é sofrimento, estar ligado ao que se detesta é sofrimento, estar separado do que se ama é sofrimento, não realizar o que se deseja é sofrimento."
Siddartha Gautama

Esta primeira Grande Verdade de Siddartha Gautama traduz aquilo que é a existência humana - sofrimento. Vivemos num estado de semi-sofrimento permanente, com momentos de felicidade efémera. Há em nós uma "sede" (desejo) constante de alcançar o inalcançável, de atingir aquilo que a nossa mente determina como fundamental, de fugirmos ao sofrimento e encontrar a felicidade. Apegamo-nos, inevitavelmente, a tudo aquilo que nos trás essa mesma felicidade, esquecidos de que ela não depende apenas de nós, das nossas acções por muito boas que sejam e que, cedo ou tarde, conheceremos a frustração da ausência, da doença, da velhice, das múltiplas contrariedades que a existência acarreta.
É preciso eliminar da nossa mente essa "sede" se quisermos realmente alcaçar a felicidade. Ignorância, auto-apego e raiva, devem desaparecer para alcançarmos a paz. Gostaria de ser capaz.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Angelika Kauffmann

Ontem foi o Dia Internacional da Mulher e nem me dei conta disso. Recebi um mail de um colega de trabalho sobre uma mulher que desconhecia, Angelika Kauffmann. Depois de pesquisar, fiquei surpreendida e algo envergonhada por ela me ter escapado.
Nasceu na Suiça em 1741, plena época das Luzes e muito embora alguns pensadores desse movimento ainda olhassem com desconfiança para a mulher e não a quisessem esclarecida, Angelika destacou-se na pintura e  foi membro fundador da Academia Real Inglesa. Antes dos 12 anos já era profissional do retrato e a sua produção artística baseou-se no estilo neoclássico. Mas nada melhor do que observar a sua obra.

terça-feira, 8 de março de 2011

Naquele planalto em terra incerta, estende-se o verde de um campo primaveril. Erva rasteira, ondulante sob uma brisa amena que desperta odores frescos de juventude. Ao longe uma árvore de braços caídos, plena de folhagem, liberta pequenas nuvens de sementes que pairam levemente e descansam, depois, por entre o frenético zunir das abelhas que, de flor em flor, se saturam do polém e bebem o néctar eterno e sempre renovado da Natureza. Junto a essa lânguida árvore há uma casa por onde passaram muitas vidas. Ecoam vozes mortas através daquelas paredes, daquelas janelas abertas e abandonadas, com fiapos de cortina envelhecida. Não tem telhado a casa e a sua desolação é silêncio por onde trepa a vegetação do abandono.

O meu vestido é tão branco, como brancas são as flores que toco com os meus dedos. Deitada na erva macia olho o azul profundo do céu e oiço a voz do anjo sem asas, cujos susurros se confudem com o som da brisa que faz ondular as ervas e a beira da minha saia.

Seguro o meu chapéu de abas largas e caminho em direcção à casa nua, morta, mas tão cheia de memórias. Corro, pisando o verde, por entre abelhas e as sementes de polém que daquela árvore se despredem. Cheguei! Toco as paredes nuas. Encosto o meu rosto a elas e absorvo o cheiro do passado, da vida que persiste, esquecida, em tons de ocre e sépia.

Mais longe, ao fundo da pradaria verde, avista-se o penhasco e o mar. Planam gaivotas e os seus gritos clamam por mim...O mergulho é para o infinito, num mar revolto que espuma lá em baixo nas rochas e que me recebe de braços abertos no esquecimento que procuro e me deixo ir, como Ofélia.


Abraça-me. Hoje está um dia cinzento, sabias? Não há raio de Sol que espreite através de nuvens tão densas, tão carregadas de lágrimas.
Abraça-me e deixa que chova, que escorra água nas minhas janelas, que os vidros tremam sob o estampido de trovões, que o mundo entre em derrapagem e venha o apocalipse.
Abraça-me, pois nos teus braços me sinto segura.

Amor...

Faz parte da vida apaixonarmo-nos de vez enquando, seja por uma pessoa, por um ideal ou até mesmo por algo tão simples como uma paisagem. Mas, ao apaixonarmo-nos isso não significa que em nós nasça um sentimento mais profundo e duradouro, como o amor. E o que é o amor, afinal? Da palavra é feito um uso, por vezes excessivo, para designar uma variedade de sentimentos que, envolvendo o gostar, têm contudo origens e razões diferentes. Amamos os nossos amigos, mas não nos sentimos tristes quando eles se ausentam por algum tempo - é o amor-amizade, destituído do Eros. Amamos os nossos filhos e até seriamos capazes de dar a vida por eles, mas não temos um sentimento de perda ou desgosto quando eles se afastam para constituir a sua própria família e seguem o seu rumo na vida. Amamos a nossa casa quando nos sentimos confortáveis e protegidos dentro dela e até podemos amar a Humanidade, sofrer pelos que sofrem, mas não deixamos de comer ou de dormir por causa disso. Amamos um namorado, um marido, uma esposa e dizemos que amamos, quando na verdade apenas gostamos, quando gostamos.
Quero falar aqui de uma forma de amor que transcende tudo isto que descrevi. Uma forma de amor que desconhecia, julgando conhecer. É que não há descrições, poesias ou prosas que nos revelem o que é esse amor, o que é amar. É preciso sentir, sim, é preciso sentir esse mesmo amor para perceber o que ele é. Ele é um sentimento perfeito perante o qual a luz da razão se apaga, vencida e nos diz que de outra forma não poderia ser. Sentimento perfeito, que nos impulsiona no sentido da perfeição e que nos faz olhar a vida, o mundo com outros olhos, fazer o bem porque tem de ser feito, caminhar pelos caminhos mais tortuosos e mesmo assim achar que o não são. Esta forma de amor resiste à adversidade e consolida-se na dificuldade. Trás felicidade quando correspondido, quando feito de presença, cumplicidade, respeito, entrega absoluta e ganha as asas de um desejo sempre renovado. É uma forma de amor que só é possível a dois e nunca sentimento de um só - como duas árvores que entrelaçam as raízes e bebem da mesma fonte. Separar o que não pode, nem deve ser separado, não mata este amor, mas faz dele dor, braço estendido que não alcança, corpo e alma amputados de uma parte de si mesmos.
Há quem nunca o encontre. Há quem seja incapaz de o ter e há quem não o queira simplesmente. Eu não sabia e por não saber julguei que o que me faltava era a liberdade, quando esta forma de amor é em si libertação. A sociedade tem medo dele, porque ele é capaz de abalar os seus mais profundos alicerçes, mostrando de forma ostensiva aquilo que todos sabem, mas não querem ver - vidas mesquinhas justificadas pelo tem de ser, pelo foi sempre assim. Por isso os amantes são olhados como insanos, perigosos, pois neles reside a semente de uma nova ordem, a nova ordem desta forma de amor que poucos conhecem e à qual todos aspiram.